Sinopse
Em três períodos diferentes vivem três mulheres ligadas ao livro “Mrs. Dalloway”. Em 1923 vive Virginia Woolf (Nicole Kidman), autora do livro, que enfrenta uma crise de depressão e idéias de suicídio. Em 1949 vive Laura Brown (Julianne Moore), uma dona de casa grávida que mora em Los Angeles, planeja uma festa de aniversário para o marido e não consegue parar de ler o livro. Nos dias atuais vive Clarissa Vaughn (Meryl Streep), uma editora de livros que vive em Nova York e dá uma festa para Richard (Ed Harris), escritor que fora seu amante no passado e hoje está com Aids e morrendo.
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Reflexões sobre o filme
O filme gira em torno do romance “Mrs. Dalloway” de Virginia Woolf, do livro descreve em especial a personalidade da personagem principal. Um tipo muito comum de personalidade que aparentemente se mostra como forte, decidida, onde tudo está bem e sob controle, mas que na verdade encobre melancolia, cansaço da vida, desesperança e muita dor.
Numa sociedade como aquela e ainda como nessa onde vivemos, onde a aparência é que conta, estar bem, estar feliz, ser otimista, estar para cima, é comum que as pessoas aprendam a ocultar seus sentimentos e guardá-los para si mesmas. Demonstrar sentimentos tornou-se sinal de fraqueza ou de dramatização, e ser sincero e verdadeiro tornou-se má educação e visto com maus olhos, então se torna mais seguro fazer de conta que tudo esta bem e que nada é problema. Esta era a forma de se comportar de Laura, Clarissa e de Leonard marido de Virginia Wolf.
Viviam as conseqüências de desencontros amorosos, conflitos, e medo da vida. Torturados no silêncio, na solidão e na reserva dos próprios sentimentos. Esta é uma realidade bastante comum para muitas pessoas e é também uma forma de evitar a dor e fazer a vida algo mais viável. É uma estratégia de sobrevivência valida como muitas outras, porém igualmente disfuncional, isto é, acaba gerando com o tempo mais dor e menos saídas. Em vão tentamos controlar os fatos, o destino e nossas reações buscando evitar a dor, mas como a vida não pode ser controlada quando nos deparamos com esta realidade nos desesperamos.
É necessário encontrarmos uma forma de lidarmos com nossa impotência ante alguns fatos e circunstâncias da vida e nos fortalecermos mesmo ante a impermanência e mutabilidade da vida. Foi o que aconteceu no final do filme quando Clarissa lida de uma forma nova com os fatos inesperados que surgem. É como se precisasse passar por algo tão impactante para desapegar-se de querer controlar os fatos e a vida.
No extremo oposto mostra outro tipo de personalidade, a da Virginia Wolf e a de Richard, que, apesar de sinceros e verdadeiros, tornam-se densos, pesados, duros e céticos ante a vida. Onde, apesar do orgulho da diferença e da coragem do enfrentamento caem muitas vezes no mesmo lugar, na desesperança e na desistência da vida. E da mesma forma seguem em direção a morte, não como um zumbi (morto-vivo) como no caso anterior, mas tirando a própria vida. Será desta forma a “banalidade” menos digna que a profundidade do sentir, quando o resultado é o mesmo? O que ligava Clarissa e Richard se não o anseio por profundidade por parte de Clarissa e a necessidade de leveza por Richard? O que é mais importante na vida, a profundidade ou a leveza? Talvez ambas sejam igualmente importantes, necessárias e complementares.
O filme traz uma reflexão entre a escolha de vida ou da morte. Mas vida desacreditada, descartada como superficial e frívola onde flertamos a morte dia a dia numa melancolia sem fim ainda não é também em algum nível negação a vida? Ou vida onde nos obrigamos a tudo, vivendo só de deveres sem direitos, superficializando nosso olhar da vida com medo de viver assolado por uma angustia silenciosa também não é negação da vida? Vida não seria ter coragem de sentir, viver, de acolher os fatos e circunstâncias mesmo desagradáveis como oportunidade se expansão de si mesmo, de humanização, ter esperança, criar e compartilhar do melhor em nós para o todo e também do melhor e pior de nós junto aos amigos? Não seria acolher o outro mesmo na sua imperfeição, como alguém que luta como nós para ser feliz e ter o melhor da vida? No filme vida é refletida no acolhimento de Clarissa e sua filha por Laura, ou de Leonard mesmo em sua limitação em relação a sua esposa Virginia, de Virginia em a sua doação à vida do melhor de si em sua criação literária, de Laura quando não foge de sua dor e remorso e sustenta seus sentimentos apesar de sua história, e de Richard quando mesmo na sua loucura e sofrimento vive ao longo de sua vida com coragem e determinação buscando honrar sua verdade e se permite ser acolhido pelo devotamento de Clarissa em sua doença.
Todos nós temos um anseio de vida e um flerte com a morte mesmo inconscientemente. E é necessário escolher que parte queremos nutrir, e fazer do flerte com a morte uma oportunidade de valorização a vida. Temos também que escolher que vida queremos enxergar e filtrar, aquela crua, dura, árida e desastrosa ou aquela leve, bela, rica, fecunda ou as duas porque são igualmente verdadeiras. Será que é possível sustentar a realidade crua e rica ao mesmo tempo? Será que uma invalida a outra ou são complementares?
No filme há duas falas da personagem Virginia Wolf que ilustra um pouco isto: “A vida desperta pelos contrastes e diferenças, pela dureza e coragem de viver”. Noutro trecho:”Não se pode ter paz evitando a vida”.
Outra reflexão do filme trata da dignidade da loucura. Sob a alegação de evitar o atentado a vida é justo privar o doente mental de sua individualidade reduzindo-o a um quadro clinico? Alguém com algum distúrbio mental não tem como contribuir ou produzir algo de valioso a sociedade? O individuo com distúrbios mentais também não tem direito de buscar sua felicidade e bem estar, não tem anseios naturais a serem buscados? Como conciliar a necessidade de cuidados e ajuda de profissionais de saúde, inclusive uso de medicação sem desrespeitar aquele que dela necessita e sua individualidade? Como preservar a dignidade do doente mental? O que seria de nossa humanidade sem a contribuição destas almas atormentadas, mas ricas, o que seria se todos os músicos, artistas, escritores, cientistas e outros criadores com distúrbios mentais se os dopássemos, e buscássemos enquadrá-los dentro de nossa normalidade? Será que não se pode ajudar a quem precisa sem reduzi-lo e diminuir sua grandeza humana? Será que muitas vezes junto ao distúrbio mental não há uma luta interna de alma que vale a pena conhecer e até com ela apreender? Por que tememos a loucura do outro e o tornamos apenas alguém com um problema, será que não é porque tememos a nossa própria loucura?
Uma outra reflexão a partir da ação da personagem Laura ou mesmo dos outros personagens: como julgar a ação do outro sem se colocar no lugar do mesmo? Será que sobre iguais circunstâncias, submetido à mesma historia de vida, lidando com as mesmas dificuldades não agiríamos também de forma que em outras circunstancias julgaríamos como repreensível? Quem de fato pode jogar a primeira pedra, se estamos tão longe da pureza da alma? Quem pode de fato dizer que desta água não beberei, sendo sincero o bastante ao reconhecer a própria imperfeição humana?
Por fim parafraseando o titulo do filme, como lidar com as horas, minutos, dias, semanas e anos enfrentando as dificuldades, sustentando os sentimentos e dores, sem se agarrar ao pessimismo, a crueza e a feiúra da vida e ao invés disto encontrar sempre um sentido maior que nos fixe nos momentos felizes, ricos e plenos da vida? Este parece um grande desafio e questão a ser resolvido por cada um de nós.
Por Flávio Vervloet